O seguinte artigo foi extraído do blog http://5dias.net/
Setembro 22, 2006 por Nuno Ramos de Almeida
Quando estive na Colômbia contava-se a seguinte anedota: numa recepção diplomática, um adido colombiano que estava ligeiramente toldado com as infinitas possibilidades do bar aberto, abordou, no meio das suas deambulações etílicas, o embaixador do Paraguai e perguntou-lhe “porque razão havia um Ministério da Marinha se não tinham mar”. O paraguaio não se atemorizou e respondeu-lhe: “pela mesmíssima razão que os colombianos têm um Ministério da Justiça”.Um amigo meu relatava-me que tinha fugido da zona de Cartagena porque o tinham ameaçado duas vezes de morte e tinha escapado, como por milagre, a um tiroteio.“Tive a nítida sensação que se não abandonasse a família e a casa, um dias destes aparecia morto junto à universidade”, dizia ele.
Diego era simplesmente um dirigente estudantil de esquerda, mas para sobreviver às agruras da “democracia” colombiana só tinha duas soluções: ou fugia para o estrangeiro ou refugiava-se na zona em que a guerrilha manda.Vim encontrá-lo num acampamento das FARC, junto ao Amazonas.O caso dele não é, infelizmente, o único. Quando fui à Universidade de Bogotá vi inúmeros papeis macabros, fotografias de professores e estudantes desaparecidos, presumivelmente abatidos pelos esquadrões da morte.
Há menos de um ano, uma das activistas mais corajosas que conheço - a Rita Cruz das PBI -, que durante anos esteve, com um grupo de estrangeiro, a viver numa aldeia da paz para impedir que os aldeões fossem massacrados, enviou pela Internet a seguinte denúncia: “San Jose de Apartado é uma das comunidades que enquanto Peace Brigades International (PBI) ajudei a proteger. É uma pequena comunidade no norte da Colômbia, situada num local demasiado estratégico; uma comunidade de camponeses que vive do cacao e da banana, que produzem em quantidade e tentam vender quando não são impedidos pelos actores armados. São pobres nos bens, mas determinados na sobrevivência. Vivem ameaças constantes, principalmente por parte dos paramilitares (braço armado ilegal do exército colombiano), mas respondem sempre com dignidade e sem recurso a armas, apenas com a palavra e o apelo à solidariedade internacional.
Não consigo expressar o quanto cada um dos líderes desta comunidade me fazia sentir humilde e pequena, muito pequenina, nas minhas lutas, ambições, frustrações, expectativas… Porque são assim, são fonte de inspiração para muitas outras comunidades dentro e fora da Colômbia, comunidades que resistem sem armas mas também sem silêncio.
Queria contra-vos que um desses líderes, Luís Eduardo, foi abordado pelo exército quando regressava do campo, juntamente com outras setepessoas, entre as quais quatro menores. Os corpos foram encontrados no dia seguinte, esquartejados, com sinais de tortura e deixados a apodrecer numa vala comum.Diz-se que quem cala consente. Eu queria pedir-vos que me ajudassem a não calar. Feitos de uma coragem que eu desconheço, a comunidade vai manter-se de pé, os líderes vão continuar a falar, até que, afirmam, oúltimo seja liquidado. Não vai ser fácil acabar com uma comunidade assim, menos ainda se a cada golpe se juntarem vozes de indignação do mundo inteiro, olhares atentos que distinguem claramente justiça da injustiça e que não deixam passar em silêncio um massacre deste tipo.
Quando estive na Colômbia e houve uma invasão paramilitar dacomunidade de Cacarica, as cartas também chegaram, em catadupas.
Quando tive uma reunião com o comandante da marinha, obviamente implicado na organização da invasão, estava-lhe estampado no rosto a raiva que as cartas, espalhadas na mesa, lhe causavam. Desprezou-as nos gestos, minimizou-as nas palavras, não abria grande parte delas, mas sabia o que continham, e a raiva de não sentir que os seus movimentos eram livres brilhavam-lhe nos olhos”.
Numa altura em que os sites mais insuspeitos promovem um abaixo-assinado de condenação da visita das FARC à Festa do Avante e de solidariedade com o governo da Colômbia, talvez seja interessante dizer que o moralmente surpreendente não é que o PCP tenha relações com as FARC, mas que a democracia portuguesa aceite albergar um representante do regime colombiano.Sou jornalista e tive a oportunidade de fazer algumas reportagens sobre guerrilhas. Estive algumas semanas nas áreas controladas pelos zapatistas e quase um mês nos acampamentos das FARC.A Colômbia vive em guerra desde o final dos anos 40. As actuais guerrilhas comunistas são herdeiras dos camponeses liberais que se revoltaram no “Bogotazo”, depois do assassinato do líder liberal Jorge Gaitan. Desde aí, “La Violenzia” impera. O país tem quase dois milhões de deslocados de guerra, morreram centenas de milhar de pessoas. No campo, exércitos e paramilitares usam a habitual táctica da contra-guerrilha, se os guerrilheiros vivem no meio da população, dizia Mao, como “peixe na água”, então é necessário secar esta corrente.
Estive em aldeias em que os paramilitares entraram e mataram à frente de toda a gente dezenas de pessoas. Houve homens que foram serrados com moto-serras, mulheres violadas em frente dos filhos. A impunidade destes grupos é tão grande, que a jornalista Jineth Bedoya, de um dos maiores jornais Colombianos (“El Espectador”), foi raptada, agredida e violada por dezenas de presos paramilitares, durante uma visita que fazia a uma cadeia de “alta-segurança” de Bogotá.Grande parte destes crimes continuam a acontecer durante o mandato do actual presidente colombiano Uribe, que acabou com as negociações de paz iniciadas pelo anterior presidente Pastrana. Conversações difíceis, até porque a desconfiança impera nos dois lados. Na última vez que a guerrilha abandonou as armas, no ano de 1984, e acreditou nas promessas de democratização do governo da Colômbia, foram assassinados, pelos esquadrões da morte, 3000 militantes da Frente Patriótica (partido criado pelas FARC), entre os quais vários senadores, deputados e dois candidatos presidenciais.
Costuma-se acusar a guerrilha colombiana de não passar de um bando de traficantes de droga. Sobre a cocaína na Colômbia é preciso esclarecer que ela atinge toda a sociedade. Durante a presidência de Gavíria (1990-94), foi encontrada droga no avião oficial que aterrou nos Estados Unidos; os colombianos chamam, por piada, à Força Aérea de “Cartel Azul”, porque quando dois aviões militares foram fazer manutenção a Miami, encontraram-se duas toneladas de coca; recentemente os paramilitares liquidaram o seu antigo chefe Carlos Castaño, devido a uma divergência de negócios.Sobre a guerrilha e a droga, a relação é igualmente complicada. Uma vez perguntei a um comandante das FARC, o comandante Jairo, sobre a relação entre a guerrilha e os traficantes. Ele respondeu-me que “a guerrilha existia muito antes da droga e que a sua razão de vida não é o tráfico, mas que a guerrilha sobrevive com o apoio dos camponeses e, como tal, não vai impedir os camponeses de cultivar a coca”. Embora, as FARC afirmem ser favoráveis a uma política de substituição de culturas, é também verdade que os guerrilheiros cobram uma taxa sobre o negócio da droga. Uma das experiências mais impressionantes que vivi foi uma ida a uma plantação e laboratório de coca. Durante um dia inteiro, desci de barco um afluente do Amazonas, andei durante uma tarde pela selva e cheguei a uma plantação. Aí, uma família de cinco pessoas produzia três quilos de pasta de coca, de dois em dois meses. Isso dava-lhe menos de 100 contos por mês, centenas de vezes menos que o valor da droga nas ruas dos states.
À sua volta trabalhavam dezenas de raspatchines , jovens, muitas vezes miúdos, que recolhiam as folhas verdes da coca. De puxar as plantas, tinham as mãos negras e calejadas nessa zona. Enquanto colhiam, cantavam uma música sobre jovens raspatchines que enriqueciam, compravam carros e viviam com belas mulheres meio nuas em piscinas… tudo isto, era o sonho MTV destes jovens, em plena zona da guerrilha.É verdade que a droga não fez a guerrilha, mas também é verdade que o pó e o seu dinheiro corrompe tudo o que toca. Esta guerra sem fim que se vive na Colômbia tornou a luta armada dos camponeses numa guerrilha sem revolução, em que o desespero os leva a considerar qualquer forma de luta. Se em 1984, o líder guerrilheiro Marulanda condenava os sequestros como contrários à luta política, hoje, os raptos normalmente chamados “pescas milagrosas” são consideradas formas normais de luta.
Como a esquerda aprendeu à sua custa há muito tempo, os fins não justificam os meios e o facto do governo da Colômbia ter presos em condições inumanas milhares de militantes de esquerda não pode justificar raptos como a da candidata presidencial Ingrid Betancourt.
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