Sunday, July 23, 2006

A lei que ninguém quer

De tempos a tempos lá aparecem pela enésima vez, na comunicação social, referências a mais um julgamento devido à prática de um aborto clandestino. Repetem-se argumentos e contra-argumentos mas nada de importante se altera. A verdade é que toda a discussão sobre este tema está feita e a única coisa que é decisiva e que falta é a tomada de decisões do poder político. De uma vez por todas há que produzir legislação por aqueles que têm obrigação de responder aos anseios das populações que os elegeram. O que não podemos é esperar eternamente que uma lei completamente desactualizada em termos históricos, sociais e culturais, fundamentalista, hipócrita – há que repetir esta designação até à exaustão - intolerante e castradora das liberdades individuais não seja aplicada devido a uma interpretação benévola dos tribunais. Se uma lei existe e os tribunais a aplicam, não estão mais que a cumprir o seu dever, quer façam ou não uma interpretação justa da mesma.
É revoltante ouvir dos auto-intitulados “defensores da vida”, afirmações tais como: “continuamos a condenar e a achar condenável o acto do aborto mas mantendo todo o respeito e a máxima tolerância pelas pessoas envolvidas”. Ou seja: a lei tem de continuar a existir mas que não seja aplicada. O que é mais significativo nesta tomada de posição é que estes fanáticos da intolerância nem sequer dão a cara pela lei em vigor e as implicações que poderá ter, em especial, em termos de aplicação de penas de prisão. Por mais que o neguem.
O caso do chamado “julgamento de Aveiro” é paradigmático. As averiguações sobre prática de aborto clandestino iniciaram-se em 1995, passaram pela absolvição de três mulheres pelo tribunal de Aveiro, em Fevereiro de 2004, sentença essa que acabou por ser refeita, recentemente, por decisão do Tribunal da Relação de Coimbra para onde havia recorrido a acusação. Desta vez, como é do domínio público, aquelas mulheres foram condenadas a 6 meses de prisão com pena suspensa por 2 anos. Também se sabe que os seus advogados vão recorrer da decisão o que nada altera em relação ao cômputo geral da situação, qualquer que seja o resultado final. Com tudo isto já se passaram mais de 10 anos em que, periodicamente, estas mulheres são sujeitas a humilhações, carregando um estigma de que, dificilmente alguma vez se verão livres. E a saga ainda não acabou…
Para o cidadão comum é incompreensível que, numa altura em que o país tem tantos problemas para resolver, estejamos ainda a gastar tempo e energias à procura de uma solução que, no fundo da consciência de cada um, é consensual.
Já se tornou evidente o incómodo que sentem as elites políticas da direita e uma parte do PS sempre que vem à baila a despenalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG). O aparente distanciamento que revelam tem a ver com um colossal pavor de desagradar à igreja católica cujo apoio é, muitas vezes, fundamental para mobilizar votos nos actos eleitorais. E este é um ponto-chave nesta problemática. Para além disso, sabemos o que aconteceu em 1998, aquando do referendo em que o líder socialista da altura – António Guterres – colocou as suas convicções morais e religiosas à frente dos interesses de uma parte significativa da população portuguesa, contribuindo para a desmobilização de sectores significativos de potenciais apoiantes da despenalização do aborto. O que parecia uma vitória certa acabou por se transformar numa derrota por falta de comparência. Esta lição deve ser recordada àqueles que agora defendem a solução parlamentar deste caso, até porque, tratando-se de uma problemática muito sensível, o referendo confere-lhe uma força suplementar.
Finalmente, a acrescentar a tudo isto está o facto de o actual Presidente de República, um claro opositor da despenalização da IVG, ser tentado a vetar uma resolução proveniente da Assembleia da República. A menos que o Prof. Cavaco tenha alguma deriva “esquerdista” em mais um elo na preparação para a recandidatura a um próximo mandato presidencial…
O que é, desde já, importante é que todas as forças da tolerância e do progresso se mobilizem, sem equívocos nem hesitações, para acabar, de uma vez por todas, com a vergonha que é termos uma lei com um cunho taliban em plena Europa do século XXI.



Luís Moleiro Santos, aderente do BE

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