Saturday, July 29, 2006

A ESTRATÉGIA DA ARANHA



A verdadeira meta




Uri Avnery


A verdadeira meta é mudar o regime no Líbano e instalar um governo fantoche.


Esse era a meta de invasão das tropas de Ariel Sharon no país em 1982. Ela falhou, mas Sharon e seus pupilos nos meios militar e político nunca desistiram da idéia.Como em 1982, a atual operação israelense foi planejada e está sendo feita em coordenação completa com os Estados Unidos. E também não há dúvidas que, como naquela época, também está sendo coordenada com uma parte da elite libanesa.Isso é o principal.
Qualquer outra coisa é barulho e propaganda.Nas vésperas da invasão de 1982, o secretário de Estado Alexander Haig disse a Ariel Sharon que, antes de iniciá-la, era necessário uma “provocação clara”, que fosse aceita pelo mundo.
E essa provocação aconteceu realmente – e exatamente no momento apropriado – quando a gangue terrorista de Abu-Nidal tentou assassinar o embaixador israelita em Londres. Não havia conexão alguma com o Líbano, muito menos com a OLP (inimigos de Abu-Nidal), mas serviu aos propósitos.Desta vez, a provocação necessária foi a captura de dois soldados israelenses pelo Hizbollah. Todos sabem que eles não podem ser libertados exceto por uma troca de prisioneiros. Mas a gigantesca campanha militar que estava pronta para ser deslanchada há meses foi vendida para o público de Israel e do mundo como uma operação de resgate.
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Estranhamente, a mesma coisa aconteceu duas semanas antes na Faixa de Gaza. O Hamas e seus parceiros capturaram um soldado, fato que proporcionou uma desculpa para uma operação massiva já preparada há muito tempo e cuja meta é destruir o governo palestino.
A meta declarada da operação Líbano é empurrar o Hizbollah para longe da fronteira, tornando impossível a captura de mais soldados e o lançamento de foguetes contra cidades israelenses. A invasão da Faixa de Gaza é também oficialmente dirigida como uma maneira de tirar as cidades de Ashkelon e Sderot do alcance de mísseis Qassams.I
sso lembra a operação “Paz na Galiléia” de 1982. Então, foi dito ao público e ao Knesset que seu principal objetivo era “empurrar os Katyushas a 40 km de distância da fronteira”. Era uma mentira deliberada. Nos onze meses anteriores à guerra, nenhum foguete Katyusha (ou um tiro sequer) havia sido disparado além da fronteira. Desde o início, o objetivo da operação era alcançar Beirute e instalar um ditador Quisling*. Como já havia dito mais de uma vez anteriormente, o próprio Sharon me disse isso nove meses antes da guerra, e assim o publiquei na ocasião (embora sem revelar a fonte).
É claro, a operação presente tem diversos objetivos secundários, que não incluem a libertação de prisioneiros. Todos sabem que isso não pode ser conseguido por meios militares. Porém, é provavelmente possível destruir alguns dos milhares de mísseis que o Hizbollah acumulou ao longo dos anos. Para isso, os líderes do Exército estão preparados para deixar em perigo os habitantes das cidades israelenses que estão expostas aos foguetes. Acreditam que isso é um risco justo, assim como uma troca de peças de xadrez.Outra meta secundária é reabilitar o “poder de dissuasão” do Exército.
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Isso é um código para a restauração do orgulho ferido das tropas, que sofreu um abalo grave devido às operações audaciosas do Hamas no sul e do Hizbollah no norte.
Oficialmente, o governo de Israel exige que o governo libanês desarme o Hizbollah e o remova da região fronteiriça. Isso é claramente impossível sob o atual regime no Líbano, um tecido delicado de comunidades etno-religiosas. O mais leve abalo pode levar a estrutura social abaixo e levar o Estado à anarquia completa – especialmente após os Estados Unidos conseguiram expulsar do país as tropas sírias, o único elemento que proporcionou estabilidade por alguns anos.
A idéia de instalar um Quisling no Líbano não é nova. Em 1955, David Ben-Gurion propôs arranjar um “militar cristão” e instala-lo como um ditador. Moshe Sharet mostrou que essa idéia era baseada na ignorância completa de assuntos libaneses e torpedeou-a. Mas, 27 anos depois, Ariel Sharon tentou efetivá-la. Bashir Gemayel foi mesmo colocado como presidente do país, somente para ser assassinado logo depois. Seu irmão Amin o sucedeu e assinou um tratado de paz com Israel, mas foi retirado do governo. O mesmo irmão hoje apóia publicamente a operação israelense em seu país.
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O calculo que está sendo feito é que, se a Força Aérea israelense abalar fortemente a população libanesa, paralisando os portos e aeroportos, destruindo a infra-estrutura, bombardeando áreas residenciais e acabando com a estrada Beirute – Damasco, o público ficará furioso com o Hizbollah e irá pressionar o governo libanês para cumprir as exigências de Israel. Como o governo atual não pode sequer sonhar com isso, uma ditadura será instalada com o apoio israelense.Essa é a lógica militar. Eu tenho minhas dúvidas. Pode-se assumir que a maioria dos libaneses vai reagir como qualquer outro povo do mundo: com fúria e ódio contra os invasores. Isso aconteceu em 1982, quando os xiitas no sul do Líbano, até então dóceis como um capacho, se levantaram contra Israel e criaram o Hizbollah, que se transformou na maior força do país. Se a elite libanesa se macular como colaboradores com Israel, será tirada do mapa. Por acaso, os Qassams e os Katyushas fizeram com que a população de Israel pressionasse nosso governo para que desistissem? Pelo contrário.A política norte-americana é cheia de contradições.
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O presidente Bush quer uma “mudança de regimes” no Oriente Médio, mas o atual governo libanês foi montado recentemente sobre pressão dos EUA. Nesse meio tempo, Bush só teve sucesso em demolir o Iraque e lá causar uma guerra civil. Poderá conseguir o mesmo no Líbano, se ele não brecar o Exército israelense a tempo.
Além disso, um golpe devastador contra o Hizbollah pode despertar a fúria não só no Irã mas também entre os xiitas no Iraque, cujo suporte é a essência da construção de um regime pró-EUA no país.Então, qual a resposta? Não por acidente, o Hizbollah realizou sua missão de captura de soldados num período em que os palestinos gritavam por apoio. A causa palestina é popular em todo o mundo árabe. Ao demonstrarem que são sim um amigo, enquanto todos os outros árabes se calam, o Hizbollah aproveita para aumentar a sua popularidade. Se um acordo entre israelenses e palestinos já houvesse sido alcançado, o Hizbollah não seria nada além de um fenômeno local, irrelevante à situação.Menos de três meses após a sua formação, o governo Olmert – Peretz obteve sucesso em levar Israel a uma guerra de dois fronts, cujo objetivo é irreal e cujos resultados não se pode prever.
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Se Olmert espera ser visto como o Senhor Macho - Macho, como um Sharon II, ele ficará decepcionado. O mesmo serve para as tentativas desesperadas de Peretz de ser levado a sério como o Senhor Segurança. Todos sabem que essa campanha de guerra
– tanto em Gaza quanto no Líbano – foi planejada pelo Exército e é ditada pelo Exército. O homem que hoje toma as decisões em Israel é Dan Halutz. Não é um acidente que o trabalho no Líbano foi dado à Força Aérea.A população de Israel não é entusiasta da guerra. Estão resignados a ela, num fatalismo estóico, pois para essa mesma população dizem que não há alternativa. E, verdade, quem pode ser contra ela? Quem não quer libertar os “soldados seqüestrados”?
Quem não quer remover os Katyushas e reabilitar a dissuasão? Nenhum político se atreve a criticar a operação – exceto os deputados árabes, que são ignorados pela população judaica. Na mídia, os generais reinam de maneira suprema, e não somente aqueles de uniforme. Praticamente não há um general aposentado que não está sendo convidado por jornalistas para comentar, explicar e justificar as ações, todos falando em coro.
Como ilustração, o canal mais popular de Israel me convidou para uma entrevista sobre a guerra, após terem ouvido que participei de uma demonstração contra ela. Fiquei surpreso. Mas não por muito tempo: uma hora antes do programa ir ao ar, o host do talk-show me telefonou e disse que tudo foi um terrível engano – na verdade, queriam convidar o professor Shlomo Avineri, ex-diretor geral do Ministério de Relações Exterior que pode-se contar com para justificar qualquer ato do governo numa linguagem acadêmica. “Inter arma silent Musae” – quando as armas falam, as musas se calam. Ou, melhor dizendo, quando os canhões rugem, o cérebro pára de funcionar.Tenho mais um breve pensamento. Quando o Estado de Israel foi fundado, no meio de uma guerra cruel, um pôster era colocado nos muros: “Todo o país, um front! Todas as pessoas, um Exército!”.
58 anos se passaram, e o slogan é hoje tão válido quanto na época. O que isso diz sobre gerações de políticos e generais?
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*Quisling, termo oriundo a partir do fascista norueguês Vidkun Quisling, é utilizado para denominar um político-fantoche, “colaboracionista” e “traidor”.
Artigo publicado originalmente pela Gush Shalom.
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Uri Avnery é ativista, jornalista e ex-militar israelense, fundador da organização Gush Shalom (http://gush-shalom.org).

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