Tuesday, November 08, 2005

O QUE SE PASSA EM PARIS??



O OUTRO LADO DA GUERRA

Miguel Portas,


No nordeste de Paris, grassa uma pequena guerra civil. Sabe-se como começou, mas não se sabe porquê. Dois jovens morreram electrocutados quando escapavam a um controlo de polícia. Pode ter sido azar, excesso de zelo ou inépcia. Certo é que, em reacção, grupos de jovens suburbanos desataram a queimar automóveis e caixotes de lixo. Durante uma semana, exibiram ao mundo e às namoradas a sua raiva.
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Quanto à Polícia, fez o que dela sempre se espera. Organizou-se em pequenas brigadas, imitando os adversários. Uma granada de gás lacrimogéneo voou, entretanto, contra uma mesquita, o que não ajudou. A luta pelo poder da noite alastrou a novos bairros. Quanto ao chefe do mega bando dos “bons”, o ministro do interior francês, Nicolas Sarkozy - que quer ser Presidente da República com os votos dos eleitores de Le Pen -, vituperou a “escumalha”, essa “gangrena” que é preciso “limpar”. Para que se percebesse quem manda, Sarkozy usou o jargão das ruas. Um ministro distanciou-se publicamente da “semântica guerreira”, e o gabinete do primeiro-ministro veio a público afirmar a sua “vontade de evitar incompreensões susceptíveis de conduzirem a novos afrontamentos”…
Agora, as coisas devem acalmar. Entre putos em bandos e bandos de polícias, estão familiares e vizinhos, as vítimas da violência exibicionista. O Ramadão, mês de jejum dos muçulmanos, acabou. Isso ajuda, porque ele não é apenas um tempo de recolhimento e sacrifício. Entre as cinco da tarde e as cinco da manhã, as horas são de festa e compensação. Agora, é provável que boa parte dos miúdos regressem aos lares. Finalmente, a acção dos ímans das mesquitas, que saíram para as ruas arrefecendo os confrontos, revelou-se mais eficaz do que a força bruta. Mas, independentemente das temperaturas, os factos aí estão. E um dia destes regressam.
A esquerda gosta de explicar este tipo de revoltas com a pobreza e a desumanidade dos bairros sociais. Na violência das megalópoles da América Latina, esses factores podem ser os decisivos. Mas duvido que o sejam em Paris. Embora sob ataque, o Estado social existe em França. O salário e o rendimento mínimo francês estão muitos pontos acima dos nossos, e subtraíram à pobreza extrema a grande maioria das famílias. Quanto aos bairros, são problemáticos, mas bem melhores do que os nossos. Até o fim das verbas para os programas de mediação cultural, que mantinham frágeis elos de ligação entre as culturas suburbanas e os poderes públicos, conta, mas não é decisivo.
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O Le Monde de quinta-feira passada revelava um estudo que confirmava o aumento dos níveis de violência entre os jovens. Entre as suas causas, a pobreza familiar era um factor secundário. O busílis da questão está noutro lado: no desenraizamento.
Estes miúdos não são nem “escumalha”, nem “assassinos”. Também não são uma “geração à rasca”, que vê frustradas as expectativas que os poderes políticos lhes prometeram. Não. Estes boeurs e negros dos subúrbios de Paris são, simplesmente, uma geração sem expectativas. São miúdos que reconhecem no bairro o seu território, a sua “pátria” e espaço de afirmação. Aí, um polícia é um estrangeiro, e um ministro idiota e reaccionário, um general de tropas de ocupação. Estes miúdos já não são, como os seus pais, argelinos ou marroquinos. Também não são subsaharianos - a irregularidade da sua situação já lhes chega e sobra como alhada. E muito menos são franceses ou europeus, apesar de aí terem nascido e crescido. Não. Estes miúdos são, ao mesmo tempo, do bairro, do mundo que vêem na TV, e das Nikes que calçam. São do Mundo e de lado nenhum. Antecipam o futuro, aliás como os polícias de choque, com os seus chefes e tiranetes. Não é por acaso que as imagens dos noticiários reproduzem tão fielmente os ambientes dos filmes de ficção científica pós-nucleares. Depois de tudo ter estoirado, os sobreviventes reconstroem-se em universos moleculares, cuja lei fundamental é a incomunicação.
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Estes putos não vão ao cinema. Mas vêem a guerra em Bagdad e ouvem discursos sobre a democracia. Sabem, de experiência própria, que ser muçulmano na Europa é complicado. E cheiram o medo que inspiram. Esta violência urbana é o lado civil do clima de guerra em que o Mundo vive. Por paradoxal que pareça, é uma tentativa desesperada de comunicação. Do gueto para o Mundo.

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