Wednesday, June 20, 2007

Le Monde Diplomatique


Contributos para um debate sobre a educação
(Artigos extraídos do "Le Monde Diplomatique").
«Educação, Emprego e Desigualdades Sociais»
Artigos de Miguel Chaves, Hugo Mendes e Maria Manuel Vieira
O sistema educativo português é uma realidade complexa que, pela forma como se relaciona com o todo social, merece ser analisado sob múltiplos aspectos. Este dossiê selecciona dois problemas que, apesar da progressiva democratização, persistem no sistema – o abandono escolar no ensino secundário e a reprodução social no ensino superior – e desmonta os perigos da vulgarização do mito da maior dificuldade de inserção profissional dos diplomados, face aos não diplomados, em termos de investimento público e social no ensino superior. Será possível corrigir as assimetrias sociais e recuperar dos atrasos de desenvolvimento sem pensar constantemente a relação entre sistema educativo, mercado de trabalho e estrutura social?
«Educação, Emprego e Desigualdades Sociais»
Artigos de Miguel Chaves, Hugo Mendes e Maria Manuel Vieira
O sistema educativo português é uma realidade complexa que, pela forma como se relaciona com o todo social, merece ser analisado sob múltiplos aspectos. Este dossiê selecciona dois problemas que, apesar da progressiva democratização, persistem no sistema – o abandono escolar no ensino secundário e a reprodução social no ensino superior – e desmonta os perigos da vulgarização do mito da maior dificuldade de inserção profissional dos diplomados, face aos não diplomados, em termos de investimento público e social no ensino superior. Será possível corrigir as assimetrias sociais e recuperar dos atrasos de desenvolvimento sem pensar constantemente a relação entre sistema educativo, mercado de trabalho e estrutura social?
A insustentável invisibilidade do abandono escolar
Por HUGO MENDES *
* Sociólogo, doutorando na Universidade de Warwick (Reino Unido).
«Quando o contrato de trabalho dos rejeitados da classe média não satisfaz, é a revolta. Quando são afastados da escola os irredutíveis, que são também os mais pobres, é a indiferença» (1). Imaginem a seguinte situação: um extraterrestre é encarregado pelo governo do seu planeta de investigar o funcionamento das instituições educativas de vários países na Terra. No final de uma ronda pelos países da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), aterra num país chamado Portugal. À chegada, depara-se com o impressionante défice de qualificações da população, concentrado nos adultos: em 2005, o número médio de anos de escolarização era de 8,2 (a média da OCDE era 12); apenas 25% tinha o ensino secundário (a média da OCDE era 67%); e cerca de metade da população activa tinha o 6.º ano ou menos.
«O problema é o legado histórico de um regime obscurantista», pensou. Mas o problema não é assim tão facilmente resolúvel pela acção da demografia. Gradualmente se apercebe de que ele se prende também com a escolarização das gerações mais novas, e notou em particular as diferenças entre os desempenhos ao nível do ensino superior e do ensino básico e secundário. Se, no que toca aos alunos matriculados no ensino superior, Portugal atingiu os níveis europeus – em 2003/2004 a média dos jovens entre os 20 e os 24 anos no superior era, na União Europeia (UE), 50,7%; em Portugal, o valor era 46,8% (2) –, as coisas são muito diferentes nos níveis básico e secundário, onde o abandono escolar precoce se mantém inalterado na última década: cerca de 13% da coorte não completa o 9.º ano, e cerca de 35% não termina o 12.º ano. Se é verdade que a taxa de abandono entre os de 18 e os 24 anos que não concluíram o secundário desceu de 44,9% em 1999 para 39,4% em 2004, este valor continua a ser elevadíssimo (3), e tanto mais impressionante quanto a UE, no âmbito do programa «Educação e Formação 2010», aprovado na linha da Estratégia de Lisboa, visa reduzir a média de jovens entre os 18 e os 24 anos sem o secundário a 10% (4).
Perante o problema de amplitude nacional que significam as taxas de não-conclusão do ensino secundário, a curiosidade do nosso extraterrestre aumenta ao aperceber-se de um padrão na opinião publicada. Nos últimos anos, o fraco crescimento económico, a recomposição estrutural da economia e as transformações no mercado de trabalho têm levado muitos a questionar se o país não atingiu já uma situação de excesso de qualificações, propagando um discurso céptico sobre os benefícios da escolarização, com repercussões inclusivamente no interior das escolas. (…)
Quem acede ao topo? – velhas e novas desigualdades no ensino superior
Por MARIA MANUEL VIEIRA *
* Socióloga, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Situada no topo da hierarquia escolar, a universidade tem representado desde a sua génese um espaço de acesso reservado. Durante vários séculos, o fechamento desta instituição com raízes medievais inscreve-se numa ordem social mais vasta pautada por fronteiras claramente demarcadas entre grupos sociais e estruturada em torno de prerrogativas distintas outorgadas a cada um. Nesta ordem pré-moderna, a desigualdade afirma-se como verdadeiro princípio constitutivo, tornando totalmente legítimos os processos de fechamento social então observáveis.
Com o advento da modernidade, emergente nos finais de setecentos, novos princípios passam a inspirar a organização da vida colectiva e o acesso às suas instituições. A nova centralidade atribuída ao indivíduo, enquanto fundamento da liberdade, associa-se à consagração de direitos inalienáveis, pautados pelo desígnio da igualdade. Tais direitos, por sua vez, passam a ser assegurados formalmente a todos os cidadãos pelo Estado, enquanto representante legítimo do bem comum.
Os sistemas sociais da modernidade – entre os quais o sistema público de ensino, no qual se integra doravante o superior – visam, justamente, ambições de universalidade. A imposição de uma escolaridade mínima obrigatória para todos é, neste âmbito, a mais conhecida realização neste domínio.
Não obstante, a construção do projecto imaginado de modernidade – como se lhe refere o sociólogo Peter Wagner (1) – constitui um processo lento. Apesar de um investimento retórico mais ou menos intenso, no plano da sua concretização prática os resultados apresentam-se bastante tímidos, pelo menos até ao começo do século XX, altura em que as primeiras barreiras anteriormente impostas pela burguesia liberal ao usufruto da condição moderna por parte da maioria da população começam a ser derrubadas.
O aprofundamento da igualdade, em matéria de acesso à educação, constitui o referencial dominante neste campo durante grande parte do século passado. Entre nós prevalece duradouramente, no entanto, um sistema escolar construído a «duas velocidades» com clara vantagem para os filhos da burguesia, que seguem uma escolaridade longa, desembocando virtualmente na universidade, em contraste com os filhos das classes populares, confinados a uma reduzida escolaridade obrigatória elementar. Acresce, a este cenário, uma outra dimensão de desigualdade de acesso aos níveis mais avançados do sistema, em particular ao superior: a que assenta no género, com clara desvantagem das raparigas. (…)

A inserção dos diplomados
Por Miguel Chaves
* Sociólogo, docente na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Pelo menos desde a década de 90, a sociedade portuguesa tem sido atravessada por um discurso a propósito da inserção profissional dos diplomados caracterizado por um enorme impressionismo e muito pautado pela troca de informações em torno de episódios pessoais trágicos – a prima licenciada desempregada, a vizinha que há meses procura trabalho e que se arrasta de contrato provisório em contrato provisório, a «caixa de supermercado» com diploma superior que «não arranjou nada», são exemplos conhecidos, dramáticos como o são todos os casos de desemprego ou de desqualificação social em qualquer nível de instrução. Por sua vez, esta visão é corroborada frequentemente nos media: a referida prima, a vizinha, a «caixa de supermercado», são aí convocadas, para nos narrarem a sua vida e o seu infortúnio. Desenvolveu-se, assim, uma relação circular e quase-consensual entre as imagens que as pessoas produzem acerca da inserção dos diplomados e as imagens com que os media preenchem o seu quotidiano, formando-se o senso comum sobre a matéria.
Este senso comum é muito alimentado por um pressuposto e por uma crença.
O pressuposto é o de que a única função do ensino superior é a de servir de canal de inserção no mercado de trabalho. Uma frequência universitária que não culmine directamente no acesso a uma posição profissional ajustada às aspirações estatutárias e remuneratórias que supostamente transporta consigo, constitui, mais do que uma perda de tempo, uma traição para com aqueles que aí investiram o seu «esforço» (muitas vezes ilustrado através do sugestivo termo «queimar as pestanas») e o dinheiro dos progenitores. Este pressuposto encontra-se bem presente aqui e ali; no modo com que se abusa da inominável expressão «canudo» para se classificar um diploma de formação universitária ou de outras como «tirar um canudo para nada», quando o referido atestado não assegura o acesso a um conjunto de empregos conformes. «Para nada» – a expressão diz tudo. Sem tradução num valor claro no mercado de trabalho, uma formação superior seria como que uma vacuidade que lança também no vazio a pessoa que a possui. Isto, como se uma formação intelectual sólida, obtida no quadro de saberes constituídos ao longo de séculos, não constituísse um valor em si mesmo, com óbvias consequências na mobilidade cognitiva e consciência crítica dos indivíduos e, por essa via, no dinamismo intelectual e cívico de uma sociedade inteira. (…)
A insustentável invisibilidade do abandono escolar
Por HUGO MENDES
*
* Sociólogo, doutorando na Universidade de Warwick (Reino Unido).
«Quando o contrato de trabalho dos rejeitados da classe média não satisfaz, é a revolta. Quando são afastados da escola os irredutíveis, que são também os mais pobres, é a indiferença» (1). Imaginem a seguinte situação: um extraterrestre é encarregado pelo governo do seu planeta de investigar o funcionamento das instituições educativas de vários países na Terra. No final de uma ronda pelos países da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), aterra num país chamado Portugal. À chegada, depara-se com o impressionante défice de qualificações da população, concentrado nos adultos: em 2005, o número médio de anos de escolarização era de 8,2 (a média da OCDE era 12); apenas 25% tinha o ensino secundário (a média da OCDE era 67%); e cerca de metade da população activa tinha o 6.º ano ou menos.
«O problema é o legado histórico de um regime obscurantista», pensou. Mas o problema não é assim tão facilmente resolúvel pela acção da demografia. Gradualmente se apercebe de que ele se prende também com a escolarização das gerações mais novas, e notou em particular as diferenças entre os desempenhos ao nível do ensino superior e do ensino básico e secundário. Se, no que toca aos alunos matriculados no ensino superior, Portugal atingiu os níveis europeus – em 2003/2004 a média dos jovens entre os 20 e os 24 anos no superior era, na União Europeia (UE), 50,7%; em Portugal, o valor era 46,8% (2) –, as coisas são muito diferentes nos níveis básico e secundário, onde o abandono escolar precoce se mantém inalterado na última década: cerca de 13% da coorte não completa o 9.º ano, e cerca de 35% não termina o 12.º ano. Se é verdade que a taxa de abandono entre os de 18 e os 24 anos que não concluíram o secundário desceu de 44,9% em 1999 para 39,4% em 2004, este valor continua a ser elevadíssimo (3), e tanto mais impressionante quanto a UE, no âmbito do programa «Educação e Formação 2010», aprovado na linha da Estratégia de Lisboa, visa reduzir a média de jovens entre os 18 e os 24 anos sem o secundário a 10% (4).
Perante o problema de amplitude nacional que significam as taxas de não-conclusão do ensino secundário, a curiosidade do nosso extraterrestre aumenta ao aperceber-se de um padrão na opinião publicada. Nos últimos anos, o fraco crescimento económico, a recomposição estrutural da economia e as transformações no mercado de trabalho têm levado muitos a questionar se o país não atingiu já uma situação de excesso de qualificações, propagando um discurso céptico sobre os benefícios da escolarização, com repercussões inclusivamente no interior das escolas. (…)
Quem acede ao topo? – velhas e novas desigualdades no ensino superior
Por MARIA MANUEL VIEIRA
*
* Socióloga, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Situada no topo da hierarquia escolar, a universidade tem representado desde a sua génese um espaço de acesso reservado. Durante vários séculos, o fechamento desta instituição com raízes medievais inscreve-se numa ordem social mais vasta pautada por fronteiras claramente demarcadas entre grupos sociais e estruturada em torno de prerrogativas distintas outorgadas a cada um. Nesta ordem pré-moderna, a desigualdade afirma-se como verdadeiro princípio constitutivo, tornando totalmente legítimos os processos de fechamento social então observáveis.
Com o advento da modernidade, emergente nos finais de setecentos, novos princípios passam a inspirar a organização da vida colectiva e o acesso às suas instituições. A nova centralidade atribuída ao indivíduo, enquanto fundamento da liberdade, associa-se à consagração de direitos inalienáveis, pautados pelo desígnio da igualdade. Tais direitos, por sua vez, passam a ser assegurados formalmente a todos os cidadãos pelo Estado, enquanto representante legítimo do bem comum.
Os sistemas sociais da modernidade – entre os quais o sistema público de ensino, no qual se integra doravante o superior – visam, justamente, ambições de universalidade. A imposição de uma escolaridade mínima obrigatória para todos é, neste âmbito, a mais conhecida realização neste domínio.
Não obstante, a construção do projecto imaginado de modernidade – como se lhe refere o sociólogo Peter Wagner (1) – constitui um processo lento. Apesar de um investimento retórico mais ou menos intenso, no plano da sua concretização prática os resultados apresentam-se bastante tímidos, pelo menos até ao começo do século XX, altura em que as primeiras barreiras anteriormente impostas pela burguesia liberal ao usufruto da condição moderna por parte da maioria da população começam a ser derrubadas.
O aprofundamento da igualdade, em matéria de acesso à educação, constitui o referencial dominante neste campo durante grande parte do século passado. Entre nós prevalece duradouramente, no entanto, um sistema escolar construído a «duas velocidades» com clara vantagem para os filhos da burguesia, que seguem uma escolaridade longa, desembocando virtualmente na universidade, em contraste com os filhos das classes populares, confinados a uma reduzida escolaridade obrigatória elementar. Acresce, a este cenário, uma outra dimensão de desigualdade de acesso aos níveis mais avançados do sistema, em particular ao superior: a que assenta no género, com clara desvantagem das raparigas. (…)

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