Declaração de candidatura de Francisco Louçã
13 Outubro de 2005
Houve há pouco tempo um primeiro-ministro que, confrontado com qualquer dificuldade, desanimava com um “O que é que querem, é a vida”. Este torpor parece tomar conta do país: “é a vida” tornou-se a desculpa para o atraso, para a pequenez, para a injustiça. O inevitável desarma a urgência, a rotina massacra a modernização. “É a vida” é o refrão de um país parado.
E está de facto parado. Trinta anos depois do 25 de Abril, os dois grandes impulsos de transformação deste tempo parecem esgotados: a democratização, que nasceu com a revolução, e a normalização, que se consolidou com a integração europeia. A democracia está a ser corroída pelo privilégio e a Europa pela desistência.
O filósofo José Gil chamou a estas abdicações o nevoeiro, resultado de uma democracia de consensos de baixa intensidade sem o reconhecimento e o combate das diferenças, e mostrou como a restrição do espaço público à omnipresença do populismo, tanto político como da indústria de entretenimento, esvai a democracia. Onde não há soluções há espectáculo – “é a vida”. Este nevoeiro é o consenso.
Sou candidato porque quero acabar com o consenso mole: o consenso é o pai da irresponsabilidade. Porque pagamos hoje um preço imenso por este nevoeiro triste: o fechamento do regime político e o apodrecimento do regime social são os resultados destes longos anos de bloco central.
O apodrecimento é a tragédia de Portugal e a responsabilidade é da élite que nos domina: quem manda não sabe e quem pode não quer. Esta élite viveu do delírio colonial durante séculos, fez uma guerra que só podia perder, habituou-se a ser uma aristocracia de privilégios e concebe agora como sempre o Estado como um cão de guarda dos seus poderes e negócios.
Os antigos capitães de indústria do Império são hoje barões da finança: com a sua liderança não se aprende, especula-se; não se produz, vende-se; não se inventa, compra-se – “é a vida”. O ouro do Brasil acabou, os fundos comunitários estão a acabar e Portugal é o país com a maior desigualdade entre os mais ricos dos mais ricos e os mais pobres dos mais pobres, com um desemprego real a alcançar os 10%, com o terceiro maior número de trabalhadores precários da Europa, com a maior dependência externa – a empresa portuguesa que mais exporta é estrangeira e pode ir-se embora em 2011. Ao mesmo tempo, a corrupção tornou-se um modo de vida e 20% da economia não paga imposto – “é a vida”?
Entretanto, a verdade das contas que interessam é ocultada pela espiral do crédito: nos últimos dez anos o endividamento das famílias passou de 40% para 118% em termos do seu rendimento disponível. O futuro vai ser pago em prestações por quem pouco tem.
Não nos enganemos: Portugal está a mergulhar num ciclo de decadência e de empobrecimento e o único problema da democracia é saber como se juntam as energias sociais para inverter esta situação e vencer o atraso.
O bloco central governante apercebe-se exactamente deste ciclo de crise e é por isso que quer impor o totalitarismo do discurso consensual e ao mesmo tempo estrangular a democracia com o populismo nos círculos uninominais – o mais grave atentado que se podia conceber contra o pluralismo e a verdade das eleições.
Sou candidato porque é indispensável que haja quem combata contra esta irresponsabilidade. Sou candidato porque é preciso quem acuse o salve-se quem puder que está a instalar-se a todos os níveis entre os poderosos: os administradores públicos impõem para si próprios os maiores salários e regalias da Europa, como temos o espectáculo despudorado de governantes que são reformados antecipados mas que querem fazer aumentar a idade da reforma para os outros. O tráfico de interesses entre governantes e empresários é simbolizado escandalosamente pela vertigem identitária das figuras que são uma coisa e logo depois outra, como se tudo fosse igual.
Sou candidato para combater esta política do apodrecimento. Sou candidato para apresentar alternativas mobilizadoras, para trazer uma nova visão para o país e, em particular, para impor a escolha de cinco grandes objectivos para os próximos cinco anos.
O primeiro objectivo é criar um sistema de protecção social universal e justo e só essa determinação permitirá responder à questão mais urgente do país, que é o desemprego de mais de meio milhão de mulheres e homens. Mas quero apresentar alternativas para a protecção social também a longo prazo, porque o sistema que existe hoje não é nem universal nem justo, nem sequer sustentável. Há hoje mais de 2,5 milhões de pensionistas e somente 1,7 activos por cada pensionista. Antecipa-se por isso que a despesa total com segurança social se eleve de 12,9% do PIB em 2000 para 16,1% em 2075. A proposta de reduzir este custo elevando a idade da reforma é violentamente injusta: a esperança média de vida dos homens é agora de menos de 74 anos e o aumento da idade da reforma condenaria uma vida inteira de descontos a quase nenhuma reforma.
Nos próximos cinco anos é precisa uma mudança radical do sistema de financiamento que garanta uma segurança social igual para todas e todos, usando uma parte dos impostos e alterando a regra de descontos para que os contributos das empresas sejam proporcionais ao valor acrescentado.
Nos próximos cinco anos, precisamos de dar grandes passos na convergência da segurança social, começando por baixo, pelos mais pobres e criando uma pensão mínima nacional ao nível do salário mínimo: essa opção custa 0,6% do PIB e é financiável pelo aumento do IVA já verificado.
O segundo grande tema para os próximos cinco anos é a reforma da justiça. Com um milhão de processos pendentes, com processos de trabalho arrastados por vinte anos, com custas tão elevadas que impedem os pobres de chegarem ao tribunal, com mais presos do que a média europeia e um quarto dos quais preventivos, a justiça não é um pilar da liberdade – e deve passar a ser. Em cinco anos, é preciso salvar a justiça, criando as condições para a priorização do combate à corrupção, para uma justiça acessível e eficaz, e para a redução do prazo máximo de prisão preventiva pelo menos num ano.
O terceiro grande debate é sobre o levantamento cultural de que o país precisa. Instalou-se a ideia de que a cultura é um luxo e que a maioria dos portugueses se contenta com lixo. Nada mais falso: a exposição de Paula Rego teve 157 mil visitantes e foram vendidos mais de cinco milhões de livros da colecção Mil Folhas (jornal Público). O país exige e deve ter a liberdade de uma criação cultural viva, bem como de um apoio empenhado à criação de públicos e à existência da diversidade – em contraste com o investimento estatal em cultura que continua abaixo de 1% do orçamento.
A quarta grande questão é a revolução ambiental. Portugal continua a ser o país com maior desperdício energético da Europa dos 15 e onde se perde 40% da água canalizada. Cerca de metade dos portugueses não é servida por estações de tratamento de águas residuais. Pior ainda: Portugal já está 14% acima do limite de emissão de gases com efeito estufa fixado pelo protocolo de Quioto – e nada tem sido feito. O Estado é ambientalmente irresponsável e não haverá modernização sem uma brutal mudança de comportamento público e privado em relação ao ambiente.
Finalmente, a quinta grande questão que quero suscitar é a Europa. O silêncio consensual sobre a União Europeia esconde um défice tremendo e um impasse preocupante. Ora, é na Europa e com a Europa que podemos e devemos determinar políticas consistentes para o pleno emprego como para a cooperação na investigação científica, na educação, na criação de patamares mínimos de protecção social. A União vai hoje na direcção contrária e essa é a razão da sua crise profunda: com a adesão de Blair à gigantesca mentira e à guerra imperial no Iraque ou agora com a coligação CDU-SPD na Alemanha, é o liberalismo ganancioso que destrói a Europa – e é preciso vencê-lo.
A minha candidatura serve para assumir responsabilidades em todos estes terrenos e para combater um estilo, um ambiente e uma política que nos diz que o país está como está porque não pode ser de outra forma. É o que nos vão repetir os que se repetem como candidatos. É o que vão repetir os que representam as políticas que provocaram a crise. A esses digo simplesmente que nunca mais me digam que não se pode fazer nada, que “é a vida”, para justificar a desistência e o consenso. Eu não desisto.
Sou candidato porque, para vencer, a esquerda precisa de um combate clarificador contra as causas da crise nacional e, nesta eleição, vamos escolher entre as grandes ideias para o país. É portanto um tempo de rigor e de frontalidade. Os ajustes de contas, as quezílias, as pequenas divisões não merecem o respeito dos eleitores. Pelo contrário, é tempo para um grande combate político em nome da esquerda socialista moderna contra o conservadorismo e o situacionismo.
Para vencer, a esquerda tem de acreditar nos seus valores – esses valores são a minha vida. Para vencer, a democracia precisa de romper com o consenso mole – o combate contra o apodrecimento é a minha razão. Para vencer, a esquerda precisa de ideias fortes – é o que debaterei com todos os meus adversários.
Os eleitores irão escolher quem vai à segunda volta e esse é o sentido da minha candidatura: merecer a confiança de todas e todos quantos procuram uma esquerda maioritária que queira vencer a condenação do atraso, que enfrente as elites dominantes, que recuse a lei da injustiça.
Esta não é a campanha de uma só pessoa: é todo o movimento socialista popular que é convocado, é toda a esquerda plural que é chamada. Cá estou. Cá estamos – é a vida. É a nossa vida, esta campanha de olhos nos olhos com as pessoas que sofrem, que se inquietam, que se preocupam com os outros, que querem derrotar o cinismo, a incompetência, a exploração e a desigualdade.
Voltar
Monday, October 17, 2005
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
No comments:
Post a Comment