O jardim mediterrânico
Foi com satisfação e até alguma emoção que vi chover, mas não fiquei tranquilo quanto ao futuro.
A situação de seca que estamos a viver no Algarve é, sem dúvida, uma das mais extremas e nada garante que não venham outros anos assim, com um pouco mais ou um pouco menos de chuva.O Mediterrâneo sempre foi assim, mas talvez agora – indicam-nos estudos internacionais e alertas de vários cientistas – a situação tenda a agravar-se, com o evoluir das alterações climáticas do globo, de que todos ouvimos falar.
O Algarve já passou, nas últimas décadas, por várias crises de seca, só que a diferença em relação a hoje reside no grande aumento do consumo, muitas vezes supérfluo.É, por isso, uma altura excelente para se parar um pouco e fazer o ponto da situação sobre o consumo de água no Algarve, sobre a conservação da paisagem e sobre a construção das novas paisagens urbanas, como são os parques e jardins, em especial públicos – mas também dos enormes resorts turísticos e dos campos de golfe à moda da Escócia.
É indispensável e urgente que todos nesta região – autarcas, empreendedores turísticos e população em geral - se consciencializem de que estamos numa situação mediterrânica e que foi por se saberem adaptar às limitações e potencialidades dessa condição edafo-climática, que a existência dos povos algarvios, desde há milhares de anos, foi possível.E, se vierem a seguir, uns anos de maiores precipitações é bom que se não volte a esquecer o ciclo das secas; e, nesta altura de seca, é conveniente prevenir as consequências das chuvas torrenciais e das cheias, se elas, como também é usual nestas latitudes, surgirem de surpresa.
Deixa de ser admissível continuar a apostar em estereótipos de atracção turística próprios das Caraíbas, em especial no que se refere aos espaços verdes das cidades, das urbanizações, das infra-estruturas, mas também da paisagem em sentido lato.
Repare-se que, quem desembarcar pela primeira vez no aeroporto de Faro, ao sair da gare e deparar com aquele vasto palmeiral, fica com a ideia – que rapidamente será desmentida – de ter chegado a uma região tropical, quando na verdade está mais próximo do deserto do que da floresta tropical…Porque será que os algarvios e os seus responsáveis não gostam e não sentem orgulho na sua paisagem mediterrânica?Mas agora creio que vão ter de assumir essa condição, pois não é possível continuar a propor e a manter, como até aqui, paisagens totalmente dependentes do consumo irresponsável de água.A água vai ser o factor limitante do tipo de vida em diversas e vastas áreas do planeta, e nós estamos dentro dessa limitação – veremos, a propósito, como se irá comportar a Espanha em relação aos nossos rios comuns …
É altura, pois, de começar a rever os parques e jardins das nossas cidades e da nossa orla costeira; e é bom que os empreendimentos de golfe, portugueses e espanhóis, pensem em se associar para constituírem lobbies em defesa dos golfes de sequeiro, os únicos compatíveis com a situação climática do Sul da Península.
Não é por se seguirem, às vezes, alguns anos de maior abundância de água que o essencial da situação se altera. Esquecemos isto com frequência.As potencialidades dos jardins mediterrânicos são enormes, permitindo criar espaços de grande beleza e agradabilidade – com os azuis luminosos do céu e do mar a servirem sempre de pano de fundo - e com baixo consumo de água.
A vegetação mediterrânica tem uma capacidade única de ser capaz de aguentar secas prolongadas; não é que enviem as raízes sempre para o fundo à procura de água, como por vezes se pensa – o que elas usam é a dormência estival, reduzindo a sua actividade radicular e foliar a um mínimo, associada às adaptações das folhas e do próprio porte das plantas.
Repare-se, por exemplo, na modesta joina (Ononis ramosissima) como tem aguentado este Verão tão quente e tão seco, sempre cheia de flor e com um agradável tom verde, crescendo sobre cabeços e bermas de estrada de aspecto calcinado, que já não vêem uma pinga de água vai para um ano! E os loendros, como se aguentam nos separadores das auto-estradas sempre em flor! E tantas outras plantas que, se utilizadas em espaços ajardinados urbanos, com uma ínfima parte da água de rega que os jardins públicos hoje gastam, criam áreas verdes todo o ano, com baixos encargos de manutenção.
É errado pensar que jardins resistentes à seca e pouco exigentes em água são feitos só com cactos, saibro e calhaus rolados – isso só revela desconhecimento das possibilidades da flora mediterrânica.
Claro que o negócio dos viveiristas comerciais leva um abanão, mas maior será se não forem capazes de se reconverter, e em vez de importarem plantas da Bélgica ou da Holanda, seria bom que se preparassem para fornecer plantas mediterrânicas, que hoje, por cá, dificilmente se encontram no mercado.
Mas, como estamos em regime de mercado e de concorrência, é preciso que estes funcionem – se a procura de plantas da nossa região começar a importunar os viveiristas e a outra mercadoria for ficando por vender, rapidamente eles se convertem. Aliás, já existem fornecedores italianos e espanhóis para muitas das espécies que nos são comuns – falta quem produza as espécies algarvias ou, no mínimo, portuguesas.O que não é aceitável é que algumas autarquias do Algarve continuem a rejeitar projectos de jardins públicos de concepção mediterrânica – onde, por exemplo, a palmeira das Canárias tem o seu lugar - e exijam relvados e flores à sombra de palmeiras exóticas que não suportam a falta de rega, nem a secura do ar.
Há males que vêm por bem, diz o ditado popular. Pode ser que a crua realidade desta temporada de seca e as fragilidades (que muitos denunciavam, mas a que ninguém dava ouvidos) da má gestão dos recursos hídricos, tragam à razão todos quantos têm responsabilidades nessa gestão e na disciplina do consumo da água.
Rever a política de campos de golfe e dos espaços verdes públicos, municipais e turísticos, é uma exigência não só do bom senso, como da garantia de um futuro suportável para habitantes e visitantes - a concepção do jardim mediterrânico dará, nesse sentido, a sua resposta positiva.
*arquitecto paisagista
20 de Outubro de 2005 17:59Fernando Pessoa*
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