Monday, October 30, 2006

Petrodólares e a Guerra Infinita


OS PETRODÓLARES E A GUERRA INFINITA
(João Vasconcelos)

1. Os impérios e a tributação directa

A tributação económica tem sido uma constante desde o aparecimento dos Estados e dos Impérios. Se um Estado-Nação tributa os seus cidadãos, um Império tributa os restantes Estados-Nação – foi o que aconteceu com os diversos impérios ao longo da história, desde os Impérios de Alexandre, o Grande, o Romano, o Espanhol, até ao Otomano e Britânico. A capacidade destes impérios para tributar baseou-se numa melhor e mais forte economia, assim como num melhor e mais forte exército. Uma parte dos impostos obtidos destinava-se a tornar mais forte o domínio militar necessário a uma boa eficácia para a cobrança desses mesmos impostos.
A tributação de um Estado subjugado efectuava-se de várias formas, normalmente em metais preciosos (ouro e prata), mas também com recurso a escravos, soldados, gado, colheitas, ou outros recursos agrícolas ou naturais. A tributação imperial foi sempre exercida directamente, ou seja, o Estado subjugado entregava os bens económicos ao Império de forma directa.


2. O império americano e a tributação indirecta

Foi no século XX e pela primeira vez na história que o mundo passou a ser tributado de modo indirecto – pelos Estados Unidos da América com o recurso à inflação. Este Império passou a difundir a sua própria moeda, o dólar, aos outros Estados em troca de bens, visando a inflação de modo planeado e posteriormente desvalorizando esses dólares e, como consequência, reembolsando depois cada dólar com uma menor quantidade de bens económicos. A diferença entre a valorização e a desvalorização do dólar representa assim o imposto imperial conseguido de forma indirecta.
Foi a seguir à I Guerra Mundial que os EUA passaram a dominar a economia mundial, sendo o dólar norte-americano fixado relativamente ao ouro, o que levava a que esta moeda não aumentava, nem diminuía, pois mantinha o mesmo valor tendo por base o ouro. Nova Iorque substituiu Londres com centro financeiro mundial.
Tanto a inflação registada entre 1921 e 1929, como a Grande Depressão, provocaram elevados défices nos EUA, que por sua vez levaram a um grande aumento de dólares em circulação, tornando impossível a sustentabilidade do dólar com o ouro. Perante este facto, o Presidente Franklin Roosevelt desligou o dólar do ouro em 1932. O valor do dólar fixado ao ouro impedia a obtenção de elevados benefícios económicos das outras nações, visto os dólares obtidos serem convertíveis em ouro.
Pode dizer-se que o império americano, em termos económicos, só surgiu com o acordo de Bretton Woods em 1945 ao estabelecer o dólar como a moeda de reserva do mundo. Até esta data, o dólar não era completamente convertível em ouro, só sendo possível esta convertibilidade para os governos estrangeiros.
Durante os anos 60 a política imperial dos EUA consistiu no incremento da emissão de dólares para o financiamento da guerra do Vietname. Uma grande parte destes dólares foi parar às mãos de estrangeiros por meio do pagamento de bens económicos por eles fornecidos aos americanos, sem que os próprios EUA tivessem qualquer intenção de os reaver pelo mesmo valor. Desta forma, a acumulação de dólares por parte de estrangeiros devido ao continuado défice comercial norte-americano, equivalia a uma tributação. Uma tributação indirecta que o império americano impunha ao resto do mundo através da inflação.
3. O sistema de petrodólares

Em 1970, quando os países estrangeiros começaram a exigir o pagamento dos seus dólares em ouro depararam com a recusa do governo americano. Este facto ocorrido em 15 de Agosto de 1971 como sendo uma forma de “cortar a ligação entre o dólar e o ouro”, mascarava o seu verdadeiro alcance – o reembolso em ouro significaria a bancarrota do império americano. Este império, para se sustentar, tinha obtido uma enorme quantidade de bens económicos do resto do mundo, sem ter a intenção ou a capacidade de devolver esses bens.
Para continuar a tributar os outros povos e nações através do dólar o império ianque necessitava de um forte motivo que fosse aceite e imposto a uma escala universal – esse motivo foi o petróleo.
Como não podiam cumprir o acordo de Bretton Woods os EUA resolveram enveredar por um novo acordo, desta vez com o reino da Arábia Saudita – o império americano suportaria a Casa Real de Saud em troca desta aceitar apenas o dólar como forma de pagamento do seu petróleo. Todos os outros países da OPEP seguiram esta medida e a partir daqui a procura de dólares no mundo só poderia aumentar, pois as necessidades de petróleo eram cada vez maiores. Se já não era possível trocar dólares por ouro, eles eram agora trocáveis por petróleo – surgia assim o sistema dos petrodólares. Não obstante este acordo, o dólar americano continuou a perder valor, valendo agora uns meros 10% daquilo que valia há 40 anos.
O domínio do império americano no mundo continuará a ser uma realidade, enquanto o dólar continuar a ser a única forma de pagamento aceitável para o petróleo. E a tributação de nações e povos continuará através do sistema dos petrodólares. Que sucederá se o dólar perder o suporte do petróleo? Alguns analistas advogam mesmo o fim do império americano como é o caso do escritor e economista Krassimir Petrov. A sobrevivência imperial exige que o petróleo seja vendido apenas em dólares.
Qualquer Estado soberano que tenha a veleidade de exigir o pagamento das suas reservas petrolíferas por uma moeda diferente que não seja o dólar, será convencido a mudar de opinião, quer através de pressões políticas, quer com o recurso aos meios militares, como aconteceu com o Iraque.
Com o advento do euro, a hegemonia do dólar americano foi posta seriamente em causa. A nova moeda europeia começou a atrair muitos países vendedores de petróleo. Logo no ano 2000 o Iraque de Saddam Hussein converteu todas as suas transacções em euros e, três anos depois, as tropas do império assaltaram aquele país na base de uma mentira colossal – a existência de armas de destruição maciça. A operação “choque e terror” de Bush nada teve a ver com as armas de destruição maciça de Saddam, nem com a defesa dos direitos humanos e a implantação da democracia. Além de pretender tomar os campos petrolíferos iraquianos, o objectivo essencial foi, sem dúvida, a defesa do dólar e, como consequência, defender o império americano.
Quando os EUA tomaram o controlo do Iraque em 2003, uma das primeiras medidas que tomaram foi retornar as vendas do petróleo do euro para o dólar americano. Uma vez mais foi restabelecida a supremacia global do dólar.
Quando em 2002 o democraticamente eleito Presidente da Venezuela, Hugo Chávez, foi vítima de uma tentativa de golpe, confirmou-se que por trás desta intentona se encontrava a CIA. Tenhamos presente que alguns meses antes Chávez manifestara a intenção de comutar para euros todas as suas vendas de petróleo.
Hoje em dia apenas existem duas bolsas que realizam a comercialização do petróleo no mundo – a NYMEX (New York Mercantile Exchange), com sede em Nova Iorque, e a IPE (Petroleum Exchange), localizada em Londres. (A COMEX – New York Commodities Exchange é uma subsidiária da NYMEX). Estas duas bolsas controlam a compra e venda de milhares de milhões de dólares de valor em produtos energéticos, metais e outros produtos. A partir daqui, os preços cotados para estes negócios na bolsa servem de base de referência, (como o petróleo Brent), para os preços que o mundo paga por esses artigos. A COMEX e a IPE asseguram assim que o mundo permaneça inundado de dólares americanos. Não será de estranhar que tanto Washington como Londres surjam como os principais parceiros da coligação que ocupou o Iraque – estava em causa a hegemonia do dólar.


4. A dívida do império

Outros problemas afectam o império e um deles é a sua saúde financeira. Vejamos alguns pontos principais:
- Os EUA com uma dívida total de 44 milhões de milhões de dólares (triliões) e a crescer muito rapidamente, possuem o mais elevado rácio de dívida da história, que se traduz em 147 312 dólares por habitante (incluindo crianças), ou seja, 589 248 dólares por uma família de quatro membros;
- O maior devedor internacional do mundo com uma dívida de 5,7 milhões de milhões de dólares acumulados em défices do comércio internacional, os EUA aumentaram estes défices para novos recordes dependendo cada vez mais da produção e poupanças dos outros povos e nações;
- No último ano a dívida americana aumentou 3,5 milhões de milhões de dólares, cinco vezes mais do que o PIB;
- A dívida do império ianque aumenta a um ritmo de 80 milhões de dólares por hora, pelo que está a tornar-se uma questão crucial a absorção pelos outros dos dólares sem valor. A China e o Japão possuem grande parte da dívida americana, detendo 1,7 milhão de milhões acumulados em títulos e divisas e neste momento estão a movimentar-se em direcção ao euro, procurando relegar o dólar para segundo plano.
Tendo em conta a saúde financeira do império atrás descritas as suas perspectivas futuras apresentam-se bastante sombrias e preocupantes. Como se isto não bastasse e que promete agravar-se face ao atoleiro iraquiano, eis que surge o dossier chamado Irão, ou melhor, o dossier avolumou-se e está a tornar-se demasiado complexo para Bush.


5. A bolsa iraniana do petróleo

A decisão de controlar o Irão por parte do império é anterior à invasão do Iraque, o que, a concretizar-se, permitirá o controlo do mercado mundial do petróleo. Para além da sua importância como 4º maior produtor mundial de crude, o Irão se decidisse bloquear o estreito de Ormuz que dá acesso ao Golfo Pérsico bloquearia 40 por cento de todo o petróleo mundial. Tanto as grandes petrolíferas, como o império e outros governos tudo fariam para impedir que tal situação acontecesse.
A questão actual em torno do país de Mahmoud Ahmadinejad não tem nada a ver com a energia nuclear mas sim com a energia do petróleo e do dólar. Se porventura Ahmadinejad se entregasse sem reservas nas mãos das grandes petrolíferas e do império, não teria qualquer tipo de problemas em produzir e com apoio total, energia atómica. É o que acontece com a ditadura militar do Paquistão, cujo fundamentalismo religioso não é inferior ao iraniano, com o governo sionista de Israel e com a Índia das castas, governos que nada têm a ver com o respeito pelos direitos humanos.
As forças navais norte-americanas continuam a navegar de forma ameaçadora no Golfo Pérsico, muito próximo das terras da antiga Pérsia. O comandante supremo das forças armadas dos Estados Unidos, ainda não há muito tempo afirmou que as ameaças de Ahmadinejad tinham de ser “enfrentadas”, que se estava disposto a destruir Israel, então também “estaria pronto a destruir outros”. E Bush acrescentou que “isto é uma ameaça que precisa de ser enfrentada”.
Serão as declarações do Presidente iraniano em relação a Israel a causa da proclamação do Presidente do Império? Ou terão sido as ambições nucleares do Irão a provocar esse tipo de reacção? O problema reside na forte ameaça de destruição que paira sobre o sistema de petrodólares (incluído o controlo de uma região que contém as maiores reservas petrolíferas do mundo). As forças imperiais só não avançaram já para o Irão porque o atoleiro iraquiano complicou tudo.
No início do presente ano o governo iraniano desenvolveu a “arma nuclear” que pode destruir rapidamente o sistema financeiro que sustenta o império americano. Essa arma é a Bolsa Iraniana de Petróleo que esteve para abrir no passado mês de Março e que foi adiada para mais tarde. Este sistema baseia-se no mecanismo “euro-oil-trading” o que implicará o pagamento do petróleo em euros. Economicamente, representa uma ameaça à hegemonia do dólar muito mais forte do que representou a ameaça de Saddam.
Caso esta bolsa de petróleo avance, praticamente todo o mundo passará a adoptar o sistema de euro-oil, relegando o dólar norte-americano para segundo plano. Europeus, chineses, japoneses, russos e árabes terão fortes razões para adoptar o euro para as transacções do petróleo. Os europeus passarão a utilizar a sua própria moeda, os chineses e japoneses ficarão livres das enormes reservas em dólares diversificando-as em euros, os russos aumentarão significativamente o seu comércio com a EU, China e Japão, e os árabes diversificarão as suas crescentes reservas de dólares em desvalorização. O império americano sofrerá assim um rude golpe.
Apenas os britânicos não estarão interessados na “morte” do dólar, pois continuam a manter uma associação estratégica com os EUA. Não é por acaso que a Grã-Bretanha ainda não adoptou o euro, continuando com a libra, principalmente porque os americanos os pressionam nesse sentido. Se o IPE (Petroleum Exchange) viesse a aceitar euros para as transacções de petróleo, iria ferir de morte o dólar e consequentemente o seu sócio estratégico. De qualquer modo, independentemente da vontade de “sua magestade”, os interesses a terem realmente peso são os dos restantes europeus, chineses, japoneses, russos e árabes e que ditarão o destino do dólar caso adoptem o euro.


6. Guerra infinita ou colapso do Império?

Os norte-americanos (e seus aliados britânicos) tudo farão para impedir a bolsa de petróleo iraniana. Segundo Krassimir Petrov, poderão utilizar um conjunto de estratégias diversificadas:
- golpe de Estado – seria a melhor estratégia, mas afigura-se de longo prazo;
- sabotando a bolsa – introduzindo um vírus no sistema, na rede ou nas comunicações, atacando o servidor ou violando as suas seguranças;
- negociando termos e limitações aceitáveis – o que será uma excelente solução, caso falhe o golpe de Estado ou a tentativa de sabotagem;
- ataque tipo 11 de Setembro – seriam atacadas as instalações principais ou de apoio;
- resolução conjunta de guerra na ONU – o que será difícil de garantir (mas não impossível), devido aos diversos interesses dos membros do Conselho de Segurança;
- ataque nuclear unilateral – o que será uma terrível opção estratégica. Israel, provavelmente, seria utilizado para fazer o trabalho sujo, o ataque nuclear;
- guerra total unilateral – o que será a pior opção estratégica, pois além dos recursos militares norte-americanos se encontrarem esgotados, outros países poderosos poderão ser arrastados para o conflito, incluindo a Rússia, China, Índia e Síria.
Se a bolsa de petróleo iraniana vier a ser uma realidade nos tempos mais próximos, a América, com toda a probabilidade, utilizará uma ou mais das estratégias acima referenciadas. E parece que a continuação da guerra infinita vem já a seguir. Ninguém acreditará que o império assista, impávido e sereno, ao colapso do dólar que, por sua vez, fará colapsar o próprio império. A queda do dólar aumentará de forma dramática a inflação americana e irá pressionar o aumento das taxas de juro de longo prazo, provocando uma forte depressão económica. Assistiremos ao colapso dos valores imobiliários, à implosão no mercado de acções e de derivados, em suma, ao colapso financeiro total.
Não é portanto de admirar que o Presidente dos Estados Unidos da América diga que o Irão “é uma ameaça que precisa de ser enfrentada”. Se o 4º Reich for impotente para travar esta ameaça, então segundo o escritor Anwaar Hussain, Kish (a bela ilha iraniana conhecida como a Pérola do Golfo Pérsico e onde se prevê estabelecer a bolsa de petróleo), “está agora a um passo de se tornar a anfitriã de uma instituição que pode principiar a dissolução final do Império”.

Obs: artigo para A Comuna (18/06/06)










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